Território em disputa: Matheus Ribs fala ao Mees após censura de obra em Petrópolis

Retrato de Matheus Ribs, 2024. Foto: Lara Dias/Reprodução Complete Magazine

Quatro dias após ter sua obra censurada durante o Festival Sesc de Inverno, o artista Matheus Ribs fala ao Portal Mees sobre o impacto do episódio, a omissão institucional e os tensionamentos entre arte, território e memória histórica no Brasil. Sem recuar, ele afirma seu compromisso com a liberdade e novos futuros.

A obra exibe a inscrição KILOMBOALDEYA sobre uma bandeira do Brasil em verde e vermelho e foi retirada do evento por agentes da Guarda Civil Municipal. Desde então, Ribs não recebeu explicações nem apoio do Sesc – instituição responsável pelo evento. Para saber mais, leia nossa reportagem “Quilombo e Aldeia sob ataque: obra de Matheus Ribs é censurada evocando lei da ditadura militar”

 

PORTAL MEES (PM) A censura te afetou pessoalmente, mas também politicamente, né? Como isso impacta seus próximos passos como artista?

MATHEUS RIBS (MR) Evidentemente, a censura afeta tanto no nível pessoal, quanto no político. E pensar como isso impacta meus próximos passos como artista é entender que este episódio ainda vai precisar de um tempo para ser compreendido e depurado, porque tudo ainda está no calor do momento. Mas, sem dúvidas, esse episódio vem para reafirmar a importância do que eu me proponho a fazer com o meu trabalho.

Acho que o próximo passo é seguir intensificando cada vez mais a minha produção, tocando ainda mais nos temas que me interessam e que levam pra sociedade discussões sobre raça, território e disputa de narrativas históricas da construção do Brasil.

Principalmente nesse momento em que as populações racializadas e os territórios tradicionais indígenas estão passando por ataques, além das mudanças climáticas. A gente está vendo esses debates efervescentes na sociedade. Então, esse episódio vem muito para reafirmar o sentido do meu caminho e do meu trabalho: para continuar fazendo o que eu faço, para continuar seguindo em frente, para continuar produzindo arte, produzindo pensamento e provocando reflexões em torno de todos esses temas.

“KILOMBOALDEYA”, do artista Matheus Ribs. — Reprodução / Matheus Ribs

(PM) Se você fosse escrever, agora, uma nova inscrição na bandeira do Brasil — substituindo ‘Ordem e Progresso’ — o que seria?

(MR) Depois de um episódio como este, a inscrição seria “território em disputa”. Por que é isso que fica claro, né? Que estamos em disputa. Como o que vem acontecendo com as comunidades indígenas – seja com os Pataxós no sul da Bahia, com povo Tupinambá, com o povo Guarani Kaiowá – e com os diversos quilombos que estão sempre sendo ameaçados por empreendimentos, fazendeiros, agentes do Agronegócio e pela mineração.

São diferentes projetos de Brasil que estão em disputa: o projeto colonial de como se relacionar com a terra e o projeto originário, indígena afrobrasileiro tradicional. Estes projetos estão tensionados na nossa sociedade. Então, não é só no campo do território, mas é uma disputa no campo das narrativas também.

Uma cidade como Petrópolis, que é fruto de um pensamento colonialista, ainda não consegue conviver com um festival de dois dias que traz uma outra forma de pensar o território e o Brasil. Então, fica evidente que ainda estamos em muitas disputas. O debate ainda está muito aberto e acirrado.

Matheus Ribs. “Fartura e Escassez”, 2025

(PM) Você mencionou que não recebeu apoio institucional imediato. Na sua opinião, o que isso revela sobre a relação entre instituições culturais nacionais e as liberdades artística e de expressão?

(MR) Hoje é o quarto dia desde que aconteceu o episódio de censura e eu ainda não tive nenhum tipo de assistência jurídica por parte do Sesc e nenhum tipo de orientação. Até o presente momento, o Sesc não esclareceu o porquê de ter acatado uma ordem como essa, vinda da Guarda Municipal e sem um mandato. Por que a instituição acatou esse tipo de violência? Eu ainda não tenho esse posicionamento por parte do Sesc. Também não tive nenhum tipo de orientação mesmo, sobre como proceder… Fiquei completamente desamparado pela instituição. E eu acho isso muito simbólico, muito sintomático, porque revela um total despreparo das instituições culturais para com artistas racializados – e para com artistas no âmbito geral né?

Por que essas instituições desejam ter as nossas narrativas, desejam contratar as nossas narrativas, mas diante de violências do Estado e da polícia, não conseguem garantir um amparo para os artistas?

Nenhum amparo legal e nenhum amparo institucional. Eu me senti completamente desamparado pelo Sesc e isso fala sobre como nós, artistas, precisamos nos organizar. Na verdade, pra que fique claro que estamos na ponta mais frágil das relações institucionais. Essas instituições desejam as nossas narrativas, mas não conseguem nos acolher, não conseguem nos defender quando precisamos, quando passamos por algum tipo de violência.

Matheus Ribs. “Fechar os corpos III”, 2023

(PM) A ação da GCM se baseou em uma lei da ditadura militar. Como você interpreta esse uso da legislação no contexto atual?

(MR) Tudo nesse episódio é bastante simbólico, né? Desde o uso dessa lei dos anos 1970, da ditadura militar – uma lei que, inclusive, fala de outras coisas, sobre como não se pode estampar a bandeira brasileira em vestuários, em objetos e que não pode comercializar… Então, é uma lei totalmente em desuso na sociedade brasileira, que não faz sentido algum ser aplicado para uma obra de arte. A obra de arte tem o direito de fazer uso de símbolos nacionais como expressão artística.

Também é muito simbólico o uso da guarda municipal como uma espécie de polícia particular de um pensamento. Então, isso revela, na verdade, resquícios de coronelismo, resquícios coloniais nas instituições brasileiras.

Principalmente, de uma cidade como Petrópolis, uma localidade como Itaipava, que é tida como “imperial”. É muito simbólico como essas instituições se mobilizam para resguardar e proteger os símbolos do poder, mas não se mobilizam para proteger os corpos racializados e os territórios que estão sendo invadidos e violados. Então, tudo nesse episódio é, de fato, muito simbólico.

Obra “Fechar os Corpos II”, 2023 de Matheus Ribs.

(PM) Como você vê o papel da arte na disputa pela memória e pela narrativa histórica no Brasil de hoje?

(MR) É muito importante dizer que eu não sou o primeiro artista a produzir um pensamento em torno dos símbolos nacionais. Temos uma gama de artistas, como Abdias do Nascimento, Cildo Meireles, Carlos Zílio, Nuno Ramos… Uma série de pessoas e artistas que têm uma produção em torno desse tensionamento. E o papel da arte é esse mesmo: é produzir pensamentos e produzir esse tipo de crítica, para que a gente mantenha o direito – que é inalienável, de imaginar outros projetos de Brasil.

Nós temos o direito de produzir outros projetos de nação e outros projetos de sociedade. Então, o papel da arte é esse e vai continuar sendo esse, queira a guarda municipal ou não, queira as instituições ou não: nós seguiremos produzindo trabalhos nesse sentido. 

Porque a história brasileira está em aberto – tanto a questão da escravidão, quanto a questão indígena e as questões do território – ainda mais nesse momento. Estamos entendendo que raça não tem a ver, necessariamente / somente / exclusivamente, com identidade, mas tem a ver com o território.

E meu trabalho é muito sobre isso: fazer esse enlaçamento das questões raciais e territoriais, sobre as questões fundiárias no Brasil que foram apagadas e que foram separadas. Nós estamos separados da terra.

Então, meu trabalho também é sobre falar do racismo ambiental, sobre como essas populações estão em vulnerabilidade e sobre como o avanço dos empreendimentos do garimpo ilegal e do agronegócio sobre esses territórios impacta não só essas pessoas, mas nos impacta aqui na cidade, impacta as periferias, impacta o mundo inteiro, na verdade. Especialmente nesse contexto de aquecimento global e mudanças climáticas. Esse é o papel do meu trabalho e é isso que eu vou continuar fazendo.

Retrato de Matheus Ribs, 2024. Foto: Lara Dias/Reprodução Complete Magazine

(PM) Após a repercussão do caso, você recebeu apoio de outros artistas, parlamentares e instituições. O que esse movimento de solidariedade representa para você?
(MR) Eu recebi a solidariedade de muitos artistas. Mas, de instituições, não. O que também é muito simbólico: como nós, artistas, continuamos do lado mais frágil, principalmente quando se trata de artistas racializados e também iniciantes – a minha produção é muito recente. Então, não recebi apoio de instituições. Eu recebi a solidariedade de artistas e de alguns parlamentares que estão se posicionando e disponibilizando seus mandatos para uma assistência jurídica ou que for necessário.

 

(PM) Você pretende recorrer judicialmente ou, talvez, transformar esse episódio em alguma nova ação ou obra?

(MR) Sobre recorrer judicialmente, como tudo foi muito rápido e como eu não tive nenhum tipo de assistência, primeiro, eu precisei ativar a minha rede. Então, esses primeiros dias foram sobre tornar o caso público. Mas, a partir de hoje, eu já começo a ter reuniões com advogados e, a partir de hoje, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados vai oficializar alguns documentos e contactar o Ministério Público, a prefeitura de Petrópolis e oficiar o Sesc, para que se esclareça o porquê de eles terem acatado essa ordem da Guarda Municipal. Então, é isso: ainda estamos vendo o que é possível fazer com esse episódio terrível. E, sobre realizar uma nova ação, eu penso que ainda é cedo, ainda preciso resolver as questões jurídicas. Mas, em breve, pretendo sim realizar algum tipo de ação em torno dessa obra.

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