Johann Zoffany. “Tribuna de Uffizi”, 1772. Óleo sobre tela.
Por Carla de Albuquerque
Você já imaginou como seria um museu de uma obra só?
Ele teria uma sede própria ou seria itinerante?
Ele estaria em uma única cidade ou em várias?
Ele seria um museu físico e/ou digital?
Ele teria acervo?
Como seria a expografia? Um simples cubo branco?
Confesso não saber as respostas, mas talvez seja possível encontrar umas pistas em um belíssimo texto do escritor Umberto Eco (1932-2016) chamado “Il museo nel terzo millennio”. Texto escrito para uma conferência ministrada no Museu Guggenheim Bilbao em 25 de junho de 2001.
Originalmente redigido em italiano, traduzido para o francês, para o espanhol a partir do texto em francês. Infelizmente nunca teve uma tradução para o português.
Meu primeiro contato foi com o texto em francês, língua que domino bem na fala, na escrita e na leitura. Por curiosidade li também em espanhol, língua que não tenho nenhum domínio, e quão grande foi a minha surpresa diante dessa tradução tão solar, muito mais leve e iluminada que a francesa.
Pode parecer um detalhe, mas a cadência da tradução do texto faz muita diferença na interpretação, e principalmente na inspiração que ele produz.
Umberto Eco começa seu texto que é uma linda declaração de amor às artes, com um trecho de um artigo, um tanto depreciativo, escrito por Paul Valéry (1871-1945), em 1923, sobre os museus:
“Não gosto muito de museus. Há muitos que são admiráveis, não há nenhum encantador. As ideias de classificação, de conservação e de utilidade pública, justas e claras, têm pouca relação com o encanto. (…) Um busto deslumbrante aparece entre as pernas de um atleta de bronze. A calma e as violências, as frivolidades, os sorrisos, as contraturas, os equilíbrios mais críticos compõem em mim uma impressão insuportável. Estou em meio a um tumulto de criaturas congeladas, em que cada uma exige, sem obtê-lo, a inexistência de todas as outras.” (VALÉRY, 1960, p. 1290)
Eco brinca que Valéry estava mal humorado quando escreveu esse texto, mas o pensamento expresso pelo poeta, ensaísta, crítico de arte francês tem forte relação com a sua formação em filosofia, com seu compromisso com a racionalidade e com a transparência cartesiana da matemática.
Para Valéry, o incômodo em relação aos museus vinha da justaposição das obras no mesmo metro quadrado, provocando uma poluição visual onde não era possível ter o prazer de admirar uma pintura, uma escultura na sua totalidade, grandiosidade e genialidade.
Lucien Przepiorski. “La salle des état au Louvre”, 1890. Óleo sobre tela.
Johann Zoffany. “Tribuna de Uffizi”, 1772. Óleo sobre tela.
O museu criticado por Valéry, como o museu descrito por Eco são os espaços que propiciam uma experiência estética única e física entre a obra e o observador.
Esse envolvimento físico com a obra não existe no livro, no catálogo, no tour virtual, só é possível no museu, mesmo que seja sombrio, pouco acolhedor, mesmo que a quantidade de obra exposta exceda a capacidade ótica do visitante.
Somente no museu é possível vivenciar a obra.
No decorrer do texto, Eco constroi com erudição e maestria uma linha histórica onde explica que a formação das coleções dos museus derivava das coleções privadas; que a coleção de arte romana formou-se pela guerra, pelo poder de conquista do vencedor; que as obras da Grécia antiga chegavam através das cópias que os colecionadores romanos faziam, que os objetos dos faraós encontrados nas tumbas são os únicos documentos de um mundo invisível.
Eco também nos lembra que os primeiros museus de curiosidade e de ciência, no século XVI não eram abertos ao público, e que o Ashmolean Museum, em Oxford, foi o primeiro museu a abrir suas portas para o público em 1683.
Após essa narrativa histórica, Eco confidência que a sua experiência estética mais prazerosa é visitar o Interior da Igreja de São Bavo em Haarlem, um óleo sobre um painel, de 1636, do pintor e desenhista holandês Pieter Saenredam (1597-1665) que se encontra no Rijksmuseum, em Amesterdam, Holanda.
Com foco e determinação, Eco entra no Rijksmuseum sem olhar para os lados, ignorando até Rembrandt para ter o prazer de permanecer por meia-hora alimentando o espírito e a mente diante da sua obra predileta.
Pieter Saenredam. “Interior da Igreja de São Bavo em Haarlem”, 1636. Óleo sobre painel.
Passados trinta minutos, foca na saída, sem paradas para manter consigo a prazerosa sensação que acabara de vivenciar.
Nessa gratificante experiência vivenciada inúmeras vezes por Eco está a resposta de todas as perguntas do início deste texto.
O museu de uma obra só que Eco chama de museu do terceiro milênio pode estar em qualquer lugar, surpreendendo, (se) renovando, oferecendo experiências estéticas inteligentes, gratificantes, inovadoras porque quem faz este museu é você.
Carla de Albuquerque