Lua (políptico, 1984) na exposição Tecendo a Manhã. Tomie Ohtake (Quioto, Japão, 1913 – São Paulo, SP, 2015)
Acrílico sobre tela. Fonte: Pinacoteca de São Paulo
I.
No caminho entre o anoitecer e o amanhecer, um imenso políptico lunar fulgura no centro da exposição Tecendo a manhã, em cartaz até 27 de julho na Pinacoteca de São Paulo. As paredes da sala central da exposição, de um tom de azul-escuro profundo, são iluminadas pela Lua (1984), de Tomie Ohtake. O astro não ocupa o fundo da cena — como nas outras salas —, ele preenche esse palco com o mesmo brilho argento que iluminou os caminhos noturnos por tempos imemoriais. O azul profundo vai esvaecendo nas paredes das salas expositivas adjacentes, até dar lugar à claridade da aurora e do poente.
Duzentos anos nos separam daqueles que estavam sujeitos aos humores celestes para enxergar seus caminhos. Com seus astrolábios, os navegadores se orientavam pelas estrelas. Em terra, a paisagem noturna se revelava em uma miríade de tons, “do breu negro conhecido como pit-mirk ao brilho intenso da lua cheia …, alguns sutis demais para a apreciação dos nossos olhos modernos”.[1] Mesmo sob o luar, a visão falhava e os sentidos precisavam se afinar para discernir um arbusto de um homem, ou um buraco de um tapete, causa frequente de acidentes.
II.
Tecendo a manhã: vida moderna e experiência noturna na arte do Brasil, com curadoria de Renato Menezes e Thierry Freitas, homenageia o poema homônimo de João Cabral de Melo Neto. O amanhecer, esse tecido luminoso que se acende aos poucos, preenchendo a paisagem noturna através dos cantos de muitos e muitos galos, é o clímax da exposição, o momento catártico em que deixamos para trás as assombrações da noite. A exposição é composta por sete salas temáticas que seguem um arco dos acontecimentos da noite: O cair da noite; Ritos, Festas e Bailes; Boêmios e Notívagos; A lua e o lobisomem; Enigmas oníricos; Pesadelos e assombrações; e O amanhecer.
Em Tecendo a manhã, o sujeito central não é a lua, mas sim a luz artificial. Embora a mostra inclua produções que atravessam o século XX até o presente, se concentra entre 1950 e 1990 — período marcado por um projeto de modernização intensificado pela ditadura civil-militar, quando a eletricidade se expande pelo território nacional. Nesse recorte, a noite raramente aparece como palco de estrelas, como breu. Em vez disso, ela é ocupada, atravessada, iluminada, especialmente pelas figuras esbeltas dos postes de luz. A noite se torna palco dos assuntos terrenos, de uma nova experiência da vida pública: deixa de ser escuridão para tornar-se extensão do dia, espaço de circulação, trabalho, boêmia e vigilância. É nesse momento que a noite se torna luz e a vida noturna, modernizada. A dimensão introspectiva da noite é uma ausência que se faz, de algum modo, perturbadora.

Noite de São João (1961). Alberto da Veiga Guignard (Nova Friburgo, RJ, 1896 – Belo Horizonte, MG, 1962). Óleo sobre tela. Fonte: Dagmar Saboya Escritório de Arte
III.
A Noite de São João (1961) poderia estar na sala de Ritos, Festas e Bailes, mas a pintura de Guignard foi exposta junto aos Enigmas Oníricos. Pessoas, balões, fogueiras, fogos de artifício, pássaros, todos ascendem, em movimento enérgico, até se dissipar no silêncio plácido e na escuridão da noite. Os olhos sobem, como que inebriados, por esses caminhos tortuosos, dando a sensação de flutuar em um espaço sem chão. O fantástico se sobrepõe à vida comum, os sentidos se perdem completamente em sonho.
Ao cair da noite, você se recolhe. Algumas horas após o entardecer, mergulha no sono. Ainda é meia-noite quando desperta pela primeira vez: os sonhos, vívidos, são fáceis de capturar. Nesse estado de vigília, a percepção ondula em um lusco-fusco entre o sonho e a memória do dia que passou. Após algumas horas nessa consciência esfumaçada, tempo suspenso, você embarca novamente no sono, que o carrega até o amanhecer.
No mundo pré-moderno europeu descrito por A. Roger Ekirch, a noite sugeria um estado de espírito reflexivo. O sono polifásico, tão comum que não levantava suspeitas, ia além do fato fisiológico básico do descanso e restauração de energias. Nos dias atuais, parece óbvio que as 8 horas contínuas de sono são uma ocorrência inevitável ao corpo humano. Em outras épocas de escuridão prolongada, entretanto, o dormir não era um período programado, mas sim se entrelaçava com modos diversos de viver a noite. O sono em duas ou múltiplas fases vinha naturalmente, pontuado por momentos de contemplação, prece, afazeres domésticos, encontros com conhecidos, ou mesmo, sexo.

Carrefour d’Infinis (1968). Wega Nery (Corumbá, MS, 1912 – Guarujá, SP, 2007). Óleo sobre tela. Fonte: Pinacoteca de São Paulo
IV.
O avanço do dia sobre a noite criou a necessidade de um sono programado, superficial, voltado estritamente ao seu papel fisiológico. O sono polifásico é, assim, muito diferente da insônia, essa anomalia excruciante do mundo contemporâneo. No limite, a extensão infinita do uso produtivo do tempo transformou o dormir em algo incomprimível e inútil.[2] Ao transformar a noite em dia, e apartar-nos dos sonhos, a luz artificial cerrou um dos caminhos mais antigos de acesso ao inconsciente humano.
Na sala dedicada aos Enigmas Oníricos da exposição, está a pintura Carrefour d’Infinis (Encruzilhada do Infinito [1968]), de Wega Nery. A paisagem imaginária criada pela artista é uma construção fantasmagórica da noite nas grandes cidades, onde concreto, luz e delírio se entrelaçam. Linhas e planos obscurecidos estruturam a pintura em camadas verticais que sugerem viadutos, pontes, edifícios, ruas. Na parte superior do quadro, o azul noturno é aquele poluído pela luz artificial. Na parte inferior, uma mancha marrom evoca a calçada iluminada de uma rua deserta. Ao centro, um retângulo verde-amarelo brilha como uma quadra incendiada por holofotes. Entre esses elementos, cores primárias surgem como lampejos — faróis, letreiros, outdoors. Caminhos se cruzam e se perdem em um sem-fim de possibilidades, onde nada é fixo ou reconhecível. Mas nada disso se apresenta de forma figurativa, apesar da sugestão narrativa. São formas indefinidas, que conformam uma paisagem deslizante que tentamos fixar com a intuição. Essa paisagem não é um retrato da noite, mas sim da sua dissolução: a noite invadida pela luz, o dia infiltrando-se sem cessar, o tempo estendido até se tornar contínuo. Um infinito temporal onde nunca desligamos. No máximo acionamos o sleep mode.
[1] EKIRCH, A. Roger. At Day’s Close: A History of Nighttime. Londres: Orion, 2005.
[2] CRARY, Jonathan. 24/7: Late Capitalism and the Ends of Sleep. Londres: Verso, 2013.
