Ainda estão aqui: obras da coleção de Niomar Moniz Sodré Bittencourt são leiloadas em Paris

Niomar Moniz Sodré Bittencourt no jornal Correio da Manhã. Sem data. Fotógrafo anônimo. ©Sotheby’s.

Amiga próxima de Eunice Paiva 1919-2018), Niomar foi jornalista e um dos principais nomes da resistência à ditadura militar no Brasil. Também foi uma das fundadoras do MAM-Rio e uma das maiores colecionadoras de arte moderna do país. Agora, parte de seu acervo foi leiloada pela Sotheby’s, fazendo com que Moniz fosse “redescoberta” pela comunidade internacional. Ao longo da vida, Niomar enfrentou dois grandes incêndios: o do museu carioca em 1977 e o do seu próprio apartamento, em 1985. As obras que foram à leilão no último 10 de abril, são exemplos do legado vivo de Moniz.

 

Uma mulher moderna

Niomar Moniz Sodré Bittencourt (1916-2003) é a primeira pessoa do Brasil, entre homens e mulheres, a ter um leilão internacional single-owned (inteiramente dedicado à sua própria coleção). Sua coleção representa não apenas um recorte precioso da arte moderna – tanto europeia, como brasileira, mas também o legado de uma das figuras mais visionárias da cultura no Brasil. O leilão movimentou o mercado internacional e reposicionou o nome de Moniz no centro do debate sobre colecionismo, memória e resistência cultural, com matérias publicadas desde a Folha de S. Paulo até o New York Times.

A trajetória de Niomar como colecionadora está profundamente entrelaçada com a história do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ). Ao lado de Raimundo Castro Maia e Maria Martins, a participação dela foi decisiva para a fundação do museu em 1948. Inspirada, sobretudo, por visitas a instituições e galerias em Nova York e na Europa nos anos 1940, ela passou a entender a institucionalização da arte moderna como uma espécie de “urgência cultural” no contexto brasileiro daquela época.

Museu de Arte Moderna do Rio. Sem data. Fotógrafo anônimo. ©Sotheby’s.

Assumindo a diretoria executiva do MAM-RJ em 1951, Moniz liderou a construção da sede no Aterro do Flamengo. O projeto do arquiteto Affonso Eduardo Reidy (1909-1964), consolidou o museu como um dos mais importantes pólos da arte no país. Em suas viagens, a colecionadora comprava obras diretamente de artistas como Pablo Picasso, Alberto Giacometti e Nicolas de Staël, muitas vezes adquirindo uma peça para o museu e outra para sua coleção particular — como relatado no livro “A memória é uma invenção”, organizado por Leno Veras e Pablo Lafuente em 2022.

 

Incêndio, exílio e sobrevivência do acervo

Em 1985, um incêndio de grandes proporções destruiu o apartamento no Rio de Janeiro (um espaço de 1.600 m²), queimando cerca de 4 mil obras, entre elas peças de Volpi, Chagall, Matisse, Mondrian e Rothko.

No entanto, parte do seu acervo pessoal havia sido salva: as peças que a colecionadora levou consigo ao se mudar exilada para Paris na décadas de 1970. Foi esse núcleo remanescente, guardado com discrição pela família, que foi levado a leilão. A única obra que “sobreviveu” ao incêndio do seu apartamento foi uma escultura em bronze de Giacometti (1901-1966), intitulada “Woman Standing” (1952). Em entrevista ao Brazil Journal, Katia Mindlin, presidente da Sotheby’s no Brasil, disse que a “obra é emblemática da história de Moniz: representando a força e fragilidade da mulher”.

Apartamento de Niomar Moniz Sodré Bittencourt em Paris, 2024. ©Sotheby’s.

Com 60 centímetros de altura, a escultura de uma mulher esguia liderou o leilão com o maior valor estimado. Segundo apuração da revista GQ, a Sotheby’s esperava que os lances chegassem a R$25 milhões (mas até o fechamento desta matéria, não foi possível confirmar o valor da venda). Criada entre 1951 e 1952, a escultura fazia parte do lote premium da coleção e foi adquirida por Moniz diretamente do artista.

Vale lembrar que este não foi o único acidente que marcou a vida de Niomar. Anos antes, em 1977, havia ocorrido o trágico incêndio no MAM-Rio, que destruiu várias obras que ela mesma havia adquirido para o museu.

Niomar Moniz Sodré Bittencourt em seu apartamento em Paris com a escultura “Woman Standing” (1952) de Alberto Giacometti (1901-1966). Sem data. Foto: Carlos Freire.

 

Diretamente de Paris: “A Mulher que Enfrentou o Brasil”

O catálogo do leilão, intitulado “La Liberté pour dogme”, tem textos em inglês e francês e reúne 70 obras, de artistas como Maria Martins, Picasso, Max Ernst, Pierre Soulages e Nicolas de Staël. O título é em homenagem ao editorial “A Liberdade é um Dogma”, de 1964, como explica Ricardo Cota, autor do texto de apresentação do catálogo e biógrafo da colecionadora, que em breve lançará o livro “A Mulher que Enfrentou o Brasil: A arte e a coragem de Niomar Moniz Sodré Bittencourt”.

Niomar Moniz Sodré Bittencourt em seu apartamento no Rio de Janeiro. Sem data. Foto: Carlos Freire.

Em reportagem publicada no Brazil Journal, a jornalista Rita Drummond, relata que em 1963, Moniz assumiu a liderança do Correio da Manhã e, durante a ditadura, transformou o jornal em uma voz de resistência, criticando abertamente o regime. Após um atentado a bomba em uma das agências de classificados do jornal, Niomar respondeu com o editorial em questão. Em 1969, ela ficou presa por 72 dias, o que gerou comoção internacional. Depois que foi solta, manteve a luta pela liberdade da imprensa e a defesa dos artistas, até que foi forçada ao exílio em Paris. O jornal fechou as portas em 1974.

Como é de praxe, a Sotheby’s não divulgou os nomes de compradores, mas sabe-se que o leilão atraiu colecionadores institucionais e privados da Europa e da América Latina. Segundo o jornal The Observer, a coleção arrecadou €11,3 milhões. Entre as obras de artistas  brasileiros a escultura “O Guerreiro” (1949) de Maria Martins (1894-1973), superou a estimativa de €80.000-120.000, sendo vendida por €279.400. Martins não apenas influenciou os interesses de Moniz como colecionadora, mas também a apresentou a Duchamp e Guggenheim, por exemplo, conectando-a às correntes mais amplas da arte do século XX. Outro resultado que vale mencionar é a pintura a óleo “14 juillet” (1955) da artista portuguesa Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992), que foi vendida por pouco mais que o estimado: €184.150. 

Escultura “O Guerreiro” (1949) de Maria Martins (1894-1973). ©Sotheby’s.

 

Arte como herança, liberdade como legado

O leilão pode ser considerado um marco para o nosso mercado, uma vez que destaca a importância de colecionadores brasileiros no cenário internacional, além de lançar luz sobre o papel das mulheres no colecionismo de arte no século XX. Sua importância também está no caráter simbólico e histórico: trata-se de uma coleção formada com um olhar curatorial apurado de uma grande articuladora cultural. Além disso, é provável que a repercussão internacional reacenda o interesse por outras coleções privadas brasileiras.

O presidente do Brasil Juscelino Kubitschek, Georges Mathieu, Niomar Moniz Sodré Bittencourt e o Conde de Arquian em frente à obra de Maria Martins. Sem data. Fotógrafo anônimo. ©Sotheby’s.

Niomar Moniz Sodré Bittencourt foi mais do que uma colecionadora: foi uma mediadora entre o Brasil e o mundo da arte. Seu legado não se mede apenas pelas obras que reuniu, mas pela rede de significados que construiu entre arte, democracia e modernidade. Ao atravessar o fogo e o tempo, sua coleção emerge agora como um arquivo de intenções e gestos que ainda reverberam. Niomar foi uma pioneira e defendeu a arte com a mesma energia com que defendeu a liberdade.

 

Fontes:

Coleção de Niomar Moniz Sodré, dama da resistência, vai a leilão pela Sotheby’s

Coleção de Niomar Moniz Sodré, fundadora do MAM Rio, vai a leilão em Paris

Ativista contra a ditadura se torna a primeira brasileira com leilão solo em Paris

Niomar Moniz Sodré Bittencourt: la dama de la resistencia y el arte moderno. Actualidad. mar 2025 | ARTEINFORMADO

A MEMÓRIA É UMA INVENÇÃO – MAM Rio

Sothebys: catalogue “La Liberté pour dogme”

SOTHEBY’S DE PARIS LANÇA CATÁLOGO DO LEILÃO DAS OBRAS DE NIOMAR MONIZ SODRÉ BITTENCOURT

Niomar Bittencourt: a mulher que enfrentou o Brasil – Brazil Journal

Saiba quem é a primeira brasileira a ter um leilão em Paris

‘Lady of the Resistance’ who faced down Brazil’s military junta

Sotheby’s to sell art belonging to Brazil’s Lady of the Resistance – The Art Newspaper

A Legacy of Resistance: Niomar Moniz Sodré Bittencourt’s Collection Nets €11.3M at Sotheby’s

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