A obra “KILOMBOALDEYA”, do artista Matheus Ribs. — Reprodução / Matheus Ribs
Festival Sesc de Inverno remove instalação “KilomboAldeya” após ação da Guarda Municipal de Petrópolis, que alegou afronta à bandeira nacional com base em lei de 1971. Caso repercute entre artistas e parlamentares.
No último sábado, 26, a Folha de São Paulo publicou que a Guarda Civil Municipal (GCM) de Petrópolis (região serrana fluminense) havia cumprido ordens de censurar a obra “KILOMBOALDEYA” do artista carioca Matheus Ribs (1994), que deveria ter sido exibida no Festival Sesc de Inverno no distrito de Itaipava. O motivo? Suposta afronta à bandeira nacional.
A alegação de desrespeito ao símbolo nacional foi feita porque a obra utiliza as cores verde e vermelho para representar a bandeira do Brasil e, no lugar de “ordem e progresso”, escreve “KilomboAldeya”. Feita em grandes dimensões para o festival, o trabalho havia sido aprovado pela curadoria e pelo Sesc.
Nas redes sociais, Ribs escreveu que a remoção da obra foi um “ato de violência policial e de censura dura à liberdade de expressão”. O artista disse que foi informado que agentes da GCM haviam solicitado a retirada e que tentaram, inclusive, prender uma gerente do evento, sob a alegação de que a obra descaracterizava o patrimônio nacional.
Conforme publicado pela Folha de S. Paulo, o Sesc negou que tenha havido ameaça de prisão e afirma, em nota, lamentar o ocorrido e que a ação foi determinada pelas autoridades competentes, com base na lei nº 5.700/1971, que dispõe sobre a forma e o uso dos símbolos nacionais, além de prever sanções para seu uso indevido.
O artigo 31 da lei, da época do regime militar, afirma que é desrespeitoso mudar a forma, cores, proporções, dístico ou acrescentar outras inscrições à bandeira. Procuradas, a Secretaria de Serviços, Segurança e Ordem Pública de Petrópolis e a Guarda Civil não se manifestaram.

A obra é de de 2020 e já havia sido exposta, em outros formatos, numa galeria de arte, feito parte de um desfile de Carnaval, além de ter integrado livros como “Terra – Antologia Afro-indígena”. Vale pontuar que Matheus Ribs é conhecido por usar símbolos nacionais ou do poder institucional para criticar os efeitos da colonização portuguesa ainda presentes no país.
O artista relatou que a organização do evento entrou em contato com ele apenas para relatar o ocorrido, mas não ofereceu nenhum suporte. “Ninguém me chamou para ir até lá. Não me ofereceram nenhum tipo de assistência jurídica. Não chegou nenhum advogado”. Simplesmente me informaram que retiraram a obra com ameaça de prender a gerente do evento”, afirma. “Não há motivo para minha obra ter sido censurada”.
Ou seja, a instituição não prestou amparo jurídico ou apoio para divulgação de uma nota conjunta sobre o ocorrido. O Sesc publicou uma resposta unilateral lamentando a situação e prestando solidariedade ao artista. Escreveu que defende “a liberdade de expressão e considera que a diversidade de manifestações artísticas é fundamental para estimular o diálogo e a reflexão sobre temas relevantes para a sociedade”.
Conforme publicou em suas redes sociais, Ribs explica que “a obra pretende fazer uma demarcação dos territórios e discutir a memória do Brasil, repensar a ideia do país a partir desses territórios, não da história colonial. A obra faz um contraponto, revela um outro projeto de Brasil”. Segundo o artista, a “ação não combina com o Estado democrático de direito, é uma censura à liberdade de expressão, isso revela muito do histórico do nosso país e dessa cidade que é uma cidade colonial, fincada no escravismo, no latifúndio”, finaliza.

Mas pode isso?
O portal Brasil de Fato apurou a questão jurídica, que reproduzimos na íntegra:
Durante a ditadura militar, foi criada a Lei nº 5.700/71 que dispõe sobre o uso e respeito aos símbolos nacionais. Pelo texto original é vedado mudar as cores, as formas ou gerar outras inscrições. No entanto, o texto foi sendo alterado com o passar dos anos e, segundo o jurista Marcelo Neves, foi superado pelo que diz a Constituição de 1988, que garante a liberdade de expressão.
“No sentido artístico, isso não tem nenhuma ofensa à Constituição. É um ato artístico que possibilita a criatividade. Esse entendimento já está superado até mesmo antes da Constituição, nas Diretas as pessoas já usavam de outras formas os símbolos nacionais, por exemplo”, explica Neves, que é especialista em direito constitucional com pós-doutorado na Faculdade de Ciência Jurídica da Universidade de Frankfurt.
No entanto, políticos da extrema direita vêm tentando resgatar o texto original para que possa ser usado em casos como a obra de Matheus Ribs. É o caso do senador Eduardo Girão (Novo-CE) que apresentou, em 2022, um projeto para tornar crime o desrespeito aos símbolos nacionais, como a bandeira do Brasil.
Uma outra proposta resgata a lei original, de 1971, para retomar artigos da ditadura. No ano passado, foi aprovado na Comissão de Defesa da Democracia do Senado o PL 5.150/2023, que criminaliza confecção, distribuição, comercialização e uso da Bandeira Nacional com cores e formas alteradas e associações a símbolos de partido político, grupos e movimentos sociais.

Ocorrido não passou batido
O portal Alma Preta divulgou que a publicação de Matheus Ribs nas redes sociais mobilizou apoio da classe artística, políticos e personalidades públicas, a exemplo do escritor Marcello Rubens Paiva. Em publicação no X (antigo Twitter) o deputado estadual e presidente do PSOL no Rio de Janeiro, Flavio Serafini, descreveu a retirada como um “ataque à liberdade artística e à democracia”. O parlamentar destacou que “Censurar a arte que exalta a resistência indígena e afro-brasileira é mais do que ignorância, é puro autoritarismo”.
A última atualização que se tem do caso é do jornal fluminense Agenda do Poder. Segundo matéria publicada pelo jornalista Marcus Alencar na última segunda-feira, 28, a Comissão de Combate às Discriminações da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) cobrará esclarecimentos sobre a retirada da obra do Festival Sesc de Inverno.
O deputado estadual Professor Josemar (Psol), presidente da Comissão da Alerj, classificou a ação como injustificável: “É um absurdo o que aconteceu. Utilizaram uma lei da ditadura de 1971, que foi extinta na Constituição, para proibir uma manifestação artística. Não podemos aceitar tamanha barbaridade”.
O parlamentar informou que colocará seu mandato e a comissão à disposição de Matheus Ribs. A intenção é apurar responsabilidades e garantir a liberdade de expressão no espaço público. Segundo a matéria, os ofícios ao Sesc e à Prefeitura de Petrópolis devem ser enviados nos próximos dias.