Fotografia brasileira na França:
Quatro exposições no festival Rencontres d’Arles revelam a amplitude e a originalidade da fotografia contemporânea produzida no Brasil
Desde 1970, o Rencontres d’Arles apresenta exposições em diversos patrimônios históricos da cidade de Arles. O festival tem uma grande influência na divulgação da fotografia mundial e é reconhecido como um trampolim internacional para artistas contemporâneos. O tema desta 56a edição é “Imagens Desobedientes”, e parte da ideia de que, enquanto o mundo é abalado pelo crescente nacionalismo, niilismo e crises ambientais, as perspectivas fotográficas apresentadas oferecem um contraponto crucial ao discurso predominante, celebrando a diversidade de culturas, gêneros e origens. Entre as as 40 exposições em cartaz, quatro delas são de artistas brasileiros. Confira detalhes sobre cada uma delas a seguir.
Futuros Ancestrais (em cartaz até 31 de agosto)
Curadoria: Thyago Nogueira. Local: Igreja dos Trinitaires
Apresenta uma nova geração de artistas que trabalham com fotografia, vídeo e colagem, abordando a sociedade e a história contemporâneas do Brasil, por meio da reinterpretação de arquivos visuais e tradições. As obras denunciam a violência histórica contra afro-brasileiros, imigrantes, indígenas e pessoas LGBTQIA+, expondo a construção de estereótipos e contestando a narrativa da história oficial do país. A postura política também se expressa na subversão das qualidades formais do enquadramento fotográfico.

O título da mostra ecoa o livro “Futuro Ancestral” (Companhia das Letras, 2022), do filósofo e ativista indígena Ailton Krenak, que desafia a ideia ocidental de progresso como um tempo cronológico e linear, propondo um futuro construído a partir do olhar para elementos essenciais do passado. Entre os artistas apresentados, está a líder indígena Celia Tupinambá que denuncia a expropriação colonial europeia dos povos indígenas, reivindicando o retorno do manto sagrado Tupinambá ao Brasil. Já Denilson Baniwa, Ventura Profana, Gê Viana, Mayara Ferrão, Yhuri Cruz e Igi Lọ́lá Ayedun usam colagem e IA para criticar o colonialismo e criar arquivos visuais com novas representações de beleza, afeto e espiritualidade. O coletivo Lakapoy e o cineasta Lincoln Péricles também desafiam as narrativas oficiais ao apresentar arquivos fotográficos produzidos por suas próprias comunidades.

Por sua vez, artistas como Rafa Bqueer, Castiel Vitorino Brasileiro e Melissa Oliveira usam fotografia e vídeo para mostrar como os corpos das pessoas também são arquivos nos quais tradições ancestrais e espirituais são apresentadas, disputadas e remixadas. Proposta semelhante pode ser observada nos autorretratos do artista Paulo Nazareth, que funcionam como uma introdução ao interesse desta nova geração pela performance e pela fotografia como forma de expor o preconceito e o racismo.

Claudia Andujar – No Lugar do Outro (em cartaz até 5 de outubro)
Curadoria: Thyago Nogueira. Local: Maison des peintres
Primeira exposição retrospectiva internacional dedicada exclusivamente ao trabalho da fotógrafa e ativista Claudia Andujar. O projeto é resultado de dois anos de pesquisa que Thyago Nogueira realizou nos arquivos de Andujar e apresenta fotografias produzidas durante as décadas de 1960 e 1970 no Brasil. Este período corresponde à produção de da fotógrafa realizada antes de seu envolvimento com o povo indígena Yanomami da Amazônia, que lhe rendeu reconhecimento mundial.
Andujar nasceu na Suíça em 1931. Sobrevivente do Holocausto, chegou a São Paulo em 1955. Profundamente marcada pelos traumas da guerra, ela encontrou uma nova vida no Brasil. A fotografia ajudou na comunicação e na compreensão do novo território. Entre 1950 e 1970, Cláudia colaborou com revistas, participou de exposições de arte e viajou por todo o país.

A exposição apresenta diferentes séries por meio das quais Andujar construiu e amadureceu sua visão fotográfica: as “Famílias Brasileiras” (1962-64), o trabalho editorial pioneiro para a revista Realidade (1966-1971), as reflexões sobre feminilidade de “A Sônia” (1971), a fotografia de rua original da “Rua Direita” (por volta de 1970) e as incursões iniciais na floresta amazônica (1970-1972).
Estas séries revelam as imersões iniciais de Cláudia em contextos sociais: sua conexão com comunidades vulneráveis; admiração pela fotografia humanística; busca da superação do realismo fotográfico por meio da experimentação gráfica; e sua admiração precoce pela natureza e pelo ambientalismo. Em 1971, Andujar conheceu o povo Yanomami enquanto trabalhava para a revista Realidade. O encontro se desenvolveu em uma missão para toda a vida, que acabou superando o trabalho das décadas anteriores (raramente exibido).

Retratistas do Morro
João Mendes e Afonso Pimenta: Reflexos da comunidade da Serra em Belo Horizonte (1970-1990)
Curadoria: Guilherme Cunha. Local: Croisière (em cartaz até 5 de outubro)
Concebido em 2015 pelo artista Guilherme Cunha, o coletivo Retratistas do Morro é baseado no compartilhamento colaborativo de conhecimento, mesclando pesquisa fotográfica com engajamento comunitário. Com um extenso arquivo, composto por 250.000 fotografias, convida à reflexão sobre as maneiras como nosso olhar evolui por meio da reavaliação de legados culturais. A exposição homenageia dois fotógrafos fundamentais, que começaram a produzir na década de 1960: João Mendes e Afonso Pimenta. Eles documentaram a vida e a memória dos moradores da comunidade de Serra, uma das maiores favelas do Brasil, localizada em Belo Horizonte.

Seus trabalhos complementam a história recente do Brasil, lançando luz sobre um passado que permanece em grande parte desconhecido para o público em geral, mas que é profundamente representativo da experiência latino-americana. Através das lentes desses dois fotógrafos, as imagens se apresentam como testemunhas das vidas, lutas e conquistas das populações mais sub-representadas do país.
A exposição se baseia em um estudo aprofundado e uma análise meticulosa desses arquivos fotográficos, buscando desvendar suas múltiplas dimensões: seu significado biográfico, a riqueza temática que abrangem e a evolução das perspectivas de João Mendes e Afonso Pimenta sobre o meio ambiente ao longo das décadas de 1970 a 1990.

Ivens Machado (em cartaz até 5 de outubro)
Curadoria: Jean-Marc Prévost. Local: Carré d’Art
Ivens Machado (1942-2015) pertence a uma geração de artistas que ganhou visibilidade na década de 1970, durante a ascensão do regime ditatorial no Brasil. A exposição apresenta uma seleção de trabalhos em vídeo e fotografia que documentam as performances do artista nesse período, nas quais ele empregou o corpo e o gesto performático como expressões de tensões sociais. Questões de violência, repressão e sexualidade são abordadas, muitas vezes de maneira explícita.
Mais tarde, Machado consolidou sua prática escultórica incorporando cimento, tijolos, madeira e ferro – materiais utilizados na construção civil. Suas obras tridimensionais sugerem a presença de corpos, estabelecendo relações entre fisicalidade e construção, arquitetura e ruínas, inclusive, de modo provocativo.
