Pinturas rupestres na Serra da Capivara, no Piauí. Imagem: Acervo Fumdham.
Arqueóloga Niède Guidon morre aos 92 anos, deixando legado inestimável ao Brasil
Responsável pela criação do Museu do Homem Americano e do Museu da Natureza, a cientista morreu no último dia 4, deixando um legado inestimável para a ciência, arte e memória do Brasil. Por meio de suas contribuições, podemos refletir sobre a relação entre arte e ciência, considerando a importância da pintura rupestre e dos museus, além da especificidade das expografias de museus de ciência.
Nascida em 1933 no interior de São Paulo, Niède teve seu primeiro contato com a região de São Raimundo Nonato (na Serra da Capivara, no Piauí) em 1963, ao se deparar com fotos de pinturas rupestres no Museu Paulista da Universidade de São Paulo (USP). Após se especializar em Arqueologia Pré-histórica na Sorbonne, na França, retornou ao Brasil em 1973 liderando uma missão franco-brasileira que identificou 55 sítios arqueológicos.
Niéde Guidon em trabalho de escavação durante os primeiros anos na Serra da Capivara. Imagem: Iphan.
Pinturas e gravuras rupestres
Diferente de outras regiões do Brasil e do mundo, onde predominam os desenhos abstratos, especialmente os geométricos, a arte rupestre da Serra da Capivara é composta principalmente por cenas da vida cotidiana, como caça, luta, sexo, dança e ritos. Foram essas manifestações artísticas que levaram Guidon a se interessar pela região e convencer o governo francês a criar a primeira missão de pesquisa no local. Se não existissem as pinturas, provavelmente, a arqueóloga não teria se lutado para conseguir realizar das escavações.
Em 1979, o Parque Nacional da Serra da Capivara com o objetivo de preservar não apenas as pinturas e gravuras, mas também a natureza da região – o que é feito pela Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham) em conjunto com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). E foi a enorme concentração de arte rupestre por metro quadrado, em sua maioria composta por desenhos sugestivos de movimento, que levaram à Unesco, em 1991, a tombar a Serra da Capivara como Patrimônio Mundial da Humanidade.
Retrato de Niède Guidon em frente às pinturas, em 2018. Foto: Paulo Vitale/VEJA.
O Museu do Homem Americano
O prédio foi finalizado em 1994 e hoje acolhe a exposição permanente. Criado para divulgar a importância do patrimônio cultural deixado pelos povos pré-históricos na região, a coleção mostra os resultados de mais de quatro décadas de pesquisas.
A exposição inicia com uma visão da evolução dos hominídeos e a apresentação das teorias de povoamento da América, seguida da vida do Homo sapiens na região durante os períodos do Pleistoceno e o Holoceno. Continuando o percurso, o visitante conhece a história da escavação arqueológica do sítio do Boqueirão da Pedra Furada. No mezanino, estão expostos instrumentos pré-históricos, urnas funerárias e esqueletos. Nas últimas salas, são apresentadas reproduções das pinturas rupestres e descrições da megafauna que viveu na região. A exposição encerra com amostras da biodiversidade atual.
Reproduções das pinturas rupestres no Museu do Homem Americano. Imagem: Acervo Fumdham.
Museu da Natureza
Inaugurado em dezembro de 2018, o museu foi construído numa região de grande concentração de sítios arqueológicos, com o intuito de mostrar os impactos climáticos nas constantes transformações da fauna e da flora. No decorrer da exposição, é apresentada uma narrativa sobre a criação do universo, por meio de uma experiência multissensorial, que envolve recursos naturais e tecnológicos.
Museu da Natureza na Serra da Capivara. Imagem: Acervo Fumdham.
Além do o Parque Nacional da Serra da Capivara, outros sítios arqueológicos onde pinturas rupestres podem ser vistas no Brasil são, por exemplo: o Parque Nacional do Catimbau, também em Pernambuco; o Lajedo de Soledade, no Rio Grande do Norte; o Parque Nacional Sete Cidades, no Piauí; e os Cariris Velhos, na Paraíba. A Serra da Capivara se destaca por ser o maior e mais antigo acervo rupestre da América, com mais de 1.000 sítios e pinturas que datam de até 10.000 anos.
Vista de uma das passarelas de observação na Serra da Capivara. Imagem: Acervo Fumdham.
A arte antes da história
As pinturas rupestres evidenciam que a relação entre arte e ciência remonta aos primórdios da humanidade. Elas registram não apenas expressões simbólicas e espirituais, mas também observações empíricas do ambiente natural e social. Esses registros visuais ancestrais revelam a curiosidade humana, a sistematização do conhecimento e a necessidade de representação — fundamentos comuns à prática científica e artística. Hoje, museus desempenham um papel essencial nesse diálogo interdisciplinar, ao preservar, interpretar e comunicar essas manifestações, promovendo a integração entre saberes e fomentando reflexões sobre a construção do conhecimento ao longo da história.
Exposições de arte pré-histórica costumam reunir desenhos de campo, fotografias, documentários, entrevistas e os chamados relevés. Trata-se da análise de uma ou mais unidades gráficas ou de um painel por meio da reprodução dos mesmos em tamanho natural sobre papel, tecido ou película plástica. No Brasil, também são chamados de “estudos de cópias” ou decalques. Em língua inglesa são denominados tracing e, em espanhol, de calco.
Exposição Préhistomania no Musée de l’Homme em Paris (novembro de 2023 a maio de 2024). Reprodução “Sortir a Paris”.
Em termos de expografia, é importante indicar, logo no início da exposição, como as legendas devem ser lidas. O padrão costuma ser: autor da obra exposta (relevé, fotografia, etc.); o título ou descrição; o local, a data e a técnica da obra; a datação da obra rupestre original, o local de conservação e número de inventário. A supressão de legendas pode ser um recurso curatorial interessante, desde que empregado de maneira didática. Em relação à iluminação, feixes de luz direcional são especialmente eficientes em destacar cores e contrates. Outras tipologias que ajudam a compor o desenho expositivo são os equipamentos usados em campo, mapas e demostrações das tecnologias utilizadas nas pesquisas. A inclusão de tais elementos também contribuem para a percepção da arte rupestre como patrimônio cultural, evidenciando que os estudos são resultado de um trabalho multidisciplinar, cuja proposta envolve a análise global das paredes, priorizando
a preservação do sítio arqueológico como um todo.
A chamada “arte rupestre” tem a capacidade de evidenciar as várias camadas da percepção humana diante uma representação, em uma escala temporal alargada. E, a cada descoberta de sítios de arte pré-histórica, a arte do nosso tempo vai sendo impactada.
Exposição Préhistomania no Musée de l’Homme em Paris (novembro de 2023 a maio de 2024). Reprodução “Sortir a Paris”.