Um amor impossível: A bela Lindonéia de 18 anos morreu instantaneamente

Andy Warhol. “Liza Minnelli”, 1978. Tinta acrílica e serigrafia sobre linho. Foto: Phaidon 

 

“A serigrafia retrata, em linhas simples, o rosto de uma mulher de cabelo preto e curto. Ela nos encara de frente, o olho marcado por uma mancha escura que o contorna”.

Esta breve descrição da obra “A bela Lindonéia” de Rubens Gerchman, poderia ser utilizada também para o retrato de Liza Minelli feito por Andy Warhol, que está à mostra até dia 30 de junho na exposição “Andy Warhol: Pop Art!”, no Museu de Arte Brasileira, em São Paulo. A obra de Gerchman – uma das versões, já que a serigrafia permite que se imprima mais de uma vez, inclusive em diferentes materiais – faz parte da coleção Robert Wright que, de 31 de maio até 5 de outubro, será o cerne da exposição “Pop Brasil: Vanguarda e nova figuração, 1960-1970” na Pina Contemporânea, também em São Paulo. O período de simultaneidade destas duas mostras será uma grande oportunidade para explorar semelhanças e diferenças entre as obras de Andy Warhol – um dos artistas mais famosos do século XX – e aquelas produzidas pelos brasileiros neste mesmo período. Neste texto não entraremos a fundo nessa aproximação, pois achamos que a experiência de as visitar será mais interessante. Assim, nos deteremos mais sobre a obra “A bela Lindonéia” que, para além de ser relevante por si só, foi inspiração para a música “Lindonéia”, do álbum “Tropicalia ou Panis et Circencis” (Phillips Records, 1968).

Na obra, o retrato da mulher é cercado pela representação de uma enorme moldura com ornamentos florais rebuscados, contrastando com a simplicidade dos traços que compõem o rosto. Um tanto Kitsch, esta moldura lembra diversos porta-retratos que são comumente usados no Brasil para colocar fotos de familiares. Porém a obra não acaba na moldura. Acima dela está estampado: “Um amor impossível”, enquanto abaixo é possível ler: “A bela Lindonéia de 18 anos morreu instantaneamente”. Voltando o olhar para a mulher, percebe-se diferenças entre os dois lados de seu rosto. Sua face esquerda está “normal”, “bela”, com grandes lábios possivelmente pintados de batom, a bochecha sadia enquadrada pelo cabelo solto. Já no outro lado o maxilar marcado se curva para dentro, revelando uma magreza excessiva, quase doentia, e o que a princípio parece ser apenas uma sombra sob o olho direito se revela como uma olheira profunda ou um hematoma.

Rubens Gerchman. “A Bela Lindonéia”, 1966. Serigrafia a cores sobre papel. Foto: Google Arts and Culture. 

 

Caetano Veloso, em seu livro “Verdade Tropical” (Companhia das Letras, 2017), conta que a música “Lindonéia” foi encomendada a ele e Gilberto Gil por Nara Leão. A cantora pediu aos dois tropicalistas que tomassem “como tema ou inspiração” este quadro de Rubens Gerchmann. Gil ficou encarregado da melodia enquanto Caetano fez a letra, que segue o pedido e dialoga diretamente com a obra. Seus versos revelam um profundo entendimento do quadro, e a música expande significados da obra.

 

Na frente do espelho

Sem que ninguém a visse

Miss, linda, feia

Lindonéia desaparecida

 

O começo indica a obra como um reflexo: é a personagem se encarando no espelho, representado pela moldura – que inclusive em algumas versões foi feita com um material reflexivo. Assim, “Miss, linda, feia” é o pensamento da própria Lindonéia, que ao se olhar demonstra grande insegurança. Seria ela linda – Miss –, como o lado esquerdo do desenho de Gerchmann, ou “feia”, tal qual aparece no outro lado? Ou então a face direita é como se vê – seus defeitos aumentados pela insegurança – enquanto a esquerda é o que ela gostaria de ser. Desta maneira, o amor impossível estampado acima do espelho é o de Lindonéia por si mesma e, portanto, sem conseguir se achar bela nunca terá amor-próprio.

Porém, essa insegurança também passa pelo fato de que ninguém a vê, como diz o segundo verso da canção: “Lindonéia desaparecida”. Desaparecida, neste caso, remete ao fato de que ela não aparece, não se destaca. Este sentido se evidencia mais adiante na música, quando este verso é repetido e seguido de “Nas paradas de sucesso”. Lindonéia não aparece nas paradas de sucesso. A personagem sente falta de atenção, de ser percebida e do interesse de outros, o que lhe causa uma profunda tristeza. “A solidão vai me matar de dor”. Assim, se ninguém a nota, o amor impossível agora é o amor dos outros.

Desaparecida também remete à violência, afinal quem está desaparecido foi possivelmente sequestrado ou morto. Esse sentido se relaciona com o escrito do quadro de Gerchmann, que diz que Lindonéia morreu instantaneamente. Desaparecer é, em certo sentido, instantâneo. Existe uma fronteira clara entre o momento em que ainda se sabe o paradeiro da pessoa e quando não se sabe mais. Porém, para quem desapareceu não é instantâneo, e seu sofrimento pode se estender por muito tempo antes de ter um fim, mesmo que ninguém saiba disso. E para os que ficam, sem saber o que aconteceu, o desaparecimento pode se estender por muito mais tempo, a esperança de que ainda esteja viva convivendo com o luto de ter se perdido, até que se descubra qual foi seu destino – quando se descobre. Esse foi o caso de muitas pessoas sequestradas, torturadas e mortas pela ditadura, vigente no período de produção da obra e da música. Mesmo que ambas tenham sido feitas antes do AI-5, que inaugurou o período de maior repressão, hoje é inevitável fazer essa associação.

Outras imagens que remetem à violência permeiam a música, através de palavras como “atropelados”, “mortos”, “batendo”, mas estão misturadas com cenas cotidianas: “cachorros”, “sol”, “frutas”, “feira”. Além disso, a sombra abaixo do olho direito da “Gioconda do subúrbio” – um hematoma – se soma ao “Amor impossível” para denunciar um crime passional. Assim, a agressão ganha um caráter doméstico e tanto a canção quanto a obra de Rubens Gerchman tratam da violência contra mulheres. Este assunto, infelizmente, ainda é muito pertinente no Brasil. Isso fica claro quando olhamos fotos da procuradora que foi brutalmente agredida pelo colega de trabalho Demétrius Oliveira de Macedo, em junho de 2022, e as comparamos com “A bela Lindonéia”. Seu lado direito é o que mais sofreu com a agressão, tanto com o olho roxo quanto com o sangue que escorreu na hora, enquanto o esquerdo quase não demonstra sinais da agressão e poder-se-ia até imaginar que o desenho foi feito a partir de uma dessas fotos, não fossem os mais de 60 anos que separam a criação da obra do crime cometido.

Notícias e imagens como essa, sensacionalistas, explícitas, povoam o vocabulário da arte Pop. A própria obra de Gerchman faz esta associação, na frase “A bela Lindonéia de 18 anos morreu instantaneamente”. A primeira parte – “A bela Lindonéia” – está escrita em uma fonte maior que o final, remetendo a manchete e subtítulo de uma notícia, uma referência à jornais que escreviam – e ainda escrevem –, manchetes propositadamente absurdas para atrair atenção. Dito isso, pedimos desculpas caso algum leitor se sinta tapeado pela deliberada graça que fizemos ao usar esta frase em nosso título e esperamos que, caso tenha chegado aqui procurando uma notícia bombástica, pelo menos entretenha-se o suficiente para continuar lendo. Na música, a referência a notícias ocorre, quando o verso “Lindonéia desaparecida” é repetido e seguido de “Nas paradas de sucesso”. Esta dupla de versos ganha um outro significado. Lindonéia aparece nas paradas de sucesso só quando está desaparecida, nas notícias de jornais com manchetes extravagantes como as que Rubens Gerchman remete em sua obra.

Andy Warhol. White Disaster (White Car Crash 19 Times), 1963. Foto: Phaidon

 

Andy Warhol também tinha grande interesse em notícias sensacionalistas. Para além de personalidades famosas como Elvis Presley e Liza Minnelli e objetos como latas de sopa, Andy Warhol se interessava também por imagens de morte. Desde quadros de Marlyn Monroe, feitas após o suicídio da atriz em 1962, até fotos de acidentes de carro, muitas de suas obras passaram por este tema. A repetição destas imagens evoca a reprodução exaustiva feita pelos jornais de notícias absurdas que de tão veiculadas se tornam banais.

Obras como estas de Warhol e de Gerchman, ao usar elementos cotidianos, lançam luz sobre questões do nosso dia a dia que de outra maneira poderiam passar sem reflexão. Assim, se tiver a oportunidade de visitar estas exposições, aproveite. E, caso se depare com a obra de Gerchman, lembre-se da música “Lindonéia”, pois existem outras aproximações passíveis de serem feitas entre ambas, mas que não são possíveis de serem abordadas neste texto. Mas cuidado, pois a obra não é grande e as questões que ela provoca não são óbvias. Se não prestar atenção, é possível que ela acabe desaparecida.

 

Fontes:

https://www.phaidon.com/agenda/art/2024/May/04/the-story-behind-andy-warhol-s-portraits-of-liza-minnelli/

https://artsandculture.google.com/asset/bela-lindon%C3%A9ia-rubens-gerchman/JQHZv8zR-7JjuA?hl=pt-BR

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