As diferentes reverberações de Eco, de Richard Serra

Richard Serra no IMS. Fotografia do autor.

 

Vivemos cercados por sons. Em uma metrópole como São Paulo o rugido incessante dos carros se soma a sirenes e buzinas, a bate estacas e britadeiras de incontáveis obras, aos zumbidos de aviões e helicópteros, a eventuais latidos e pios de pássaros, além de inúmeros outros sons, barulhos e ruídos inerentes a uma cidade viva e movimentada. Estamos tão acostumados com esta cacofonia que muitas vezes a abstraímos, e vivemos sem notá-la. Às vezes, é preciso algo que nos faça parar e ouvir, prestar atenção o suficiente para reparar na existência incessante destes sons, que nosso cérebro normalmente prefere ignorar. (Espero que esta introdução sirva como estímulo e os provoque, caros leitores, a ouvir por um instante. Mesmo em uma área mais pacata tenho certeza de que escutará algo, que em outra ocasião teria passado despercebido). Fato é que nunca podemos encontrar silêncio absoluto, mesmo em áreas remotas. Até nos fundos de uma caverna, completamente isolados do mundo, não nos livramos de barulhos. Sozinhos, cercados por toneladas de terra que abafam sons externos, os nossos próprios passos e respiração, ecoados pelas paredes de pedra, nos mostram como também somos participantes da cacofonia do mundo.

Eco é o nome de uma obra de Richard Serra, inaugurada em 2019. Ela fica no espaço criado pelo recuo de fundo do edifício do Instituto Moreira Salles, na Avenida Paulista. Para chegar lá precisamos atravessar uma passagem, quase um túnel – ou caverna – ao lado do restaurante Balaio. Quem não sabe que esta obra existe só a descobre se errar e passar reto pela escada rolante na entrada do instituto, for comer no restaurante ou, tendo subido até o quarto andar, ver seu topo, única parte visível dali, e decidir ir procurar sua base. Quando a sinalização a menciona não o faz de modo evidente, podendo facilmente não ser notada por um visitante pouco atento. Essa dificuldade de acesso, gerada pela escolha de sua localização, pode estimular questões interessantes. Para colocar uma, quão pública realmente é esta obra, escondida atrás do edifício do instituto, e que tipos de apropriação ela teria se estivesse em um local mais aberto de São Paulo, onde pessoas talvez se inibissem menos a interagir com ela?
 

IMS. Fotografia do autor.

 

Serra não é um artista que foge deste tipo de questão, e o exemplo mais emblemático de sua relação com o urbano é a obra “Tilted Arc”. Instalada em 1981, ela cortou a Foley Federal Plaza, em Nova York, durante a década de 80. Gerou tantas polêmicas que foi removida em 1989, após uma batalha judicial entre o governo, que tanto financiou quanto removeu a obra, e o artista. Por mais pertinentes que sejam discussões deste tipo, como o acesso à arte pública, não pretendo abordá-las aqui. Richard Serra escolheu conscientemente onde iria colocar sua obra, como indicado no evento de inauguração da obra, disponível no Youtube, e quero explorar como este espaço potencializa certos aspectos artísticos de Eco que não existiriam se ela estivesse em outro local.

Foto de tilted arc retirada de https://www.kunsteder.dk/en/cases/when-art-gets-in-the-way

O primeiro aspecto envolve a relação entre as dimensões do espaço e as da obra. Formada por duas placas de ferro de 18 metros de altura, colocadas na vertical, Eco é grande. Já o espaço disponível para observá-la é comparativamente pequeno, o que impede um olhar distanciado da obra. Ao nos obrigar a estar sempre perto, cria um efeito interessante de escala, pois coloca nosso corpo em relação à obra. Se fosse instalada em um espaço mais aberto, por exemplo na frente do IMS, a veríamos primeiro ainda pequena, diminuída pela distância e pela comparação com os altos prédios da avenida Paulista, muito antes de nos aproximarmos dela. Assim, quando chegássemos perto já teríamos em nossa mente seu tamanho, e a obra perderia um pouco de sua potência. No lugar em que ela se encontra, só a vemos quando saímos da passagem que nos leva até seu recinto, já bem próximos dela – próximos demais. Nossos passos, que buscam nos afastar da obra para tentar observá-la como um todo, nos levam a esbarrar nos muros do terreno. Somos forçados a olhar para cima para ver seu topo, inclinando a cabeça, provocando uma sensação de vertigem, e é difícil determinar seu tamanho real. A esta curta distância, nem a relação com os prédios em volta pode nos ajudar. Olhando de baixo para cima, para a obra e para os edifícios, e mais próximos dela do que deles, a perspectiva se embaralha, e não conseguimos usá-los como medida. Percebemos, então, que estamos vendo os prédios de um ângulo diferente do usual, estabelecendo uma nova relação com estes gigantes que foram normalizados em nosso cotidiano, e nos pegamos questionando nossas noções sobre seu tamanho. Estamos acostumados a conviver com estas enormes e imponentes estruturas, sem pensar muito sobre sua escala, e é interessante enxergá-las com novos olhos. Tal qual quando escutamos os ruídos que nosso cérebro está acostumado a ignorar, algo que é aparentemente banal se torna objeto de reflexão ao focarmos nele. Por fim, sem conseguir usar os prédios para medi-la, só nos resta colocar nosso corpo como régua. Ao fazer isso, nos percebemos apequenados diante da obra e da nossa nova perspectiva sobre os edifícios. Assim, ela nos devolve a pergunta que a fizemos, como um eco: qual é o seu tamanho?

Richard Serra no IMS. Fotografia do autor.

Esta sensação de pequenez é intensificada pelo fato de que as placas não são completamente verticais. Elas se inclinam para o mesmo lado, assomando sobre nós quando entramos no espaço. A inclinação é pequena, somente 5 centímetros nos 18 metros que cada placa tem. É o suficiente para embaralhar nossa percepção, mas não é tanto a ponto de notarmos com facilidade o que está acontecendo. Nos resta a sensação de que estas placas estão tombando para cima de nós e, quando olhamos para cima, a perspectiva nos engana, suas linhas de fuga distorcidas pela inclinação. As placas também não estão alinhadas no plano horizontal, nem entre si nem com os edifícios do entorno. Ao entrar, parecem estar se abrindo diante de nós, a de trás mais angulada que a da frente. Todas estas rotações dão à obra certa delicadeza, pois tiram ela de uma organização ortogonal, cartesiana, que lhe imporia rigidez. Além disso, o fato de uma não estar paralela à outra cria tensão entre elas, reverberando entre si. Elas parecem estar se atraindo e repelindo ao mesmo tempo, girando, ou até dançando. Somos tentados a caminhar, mudar nosso ponto de vista para entender estas inclinações e explorar a relação de uma placa com a outra. Andando em volta e por entre elas exploramos também, inevitavelmente, a relação do nosso corpo com a obra.

Richard Serra no IMS. Fotografia do autor.

Existe mais de um ponto de vista de Eco – literalmente. Se subirmos até o quarto andar do IMS podemos ver o topo da obra. Aqui, o final das placas fica praticamente no nível dos nossos olhos, mas é separado de nós por grossos vidros. Não conseguimos ver sua base, escondida pelo piso, e somos impedidos de inclinar para fora e olhar para baixo pelo parapeito. Ao mesmo tempo que está separada de nós por uma barreira física, ela parece mais próxima, por estar na nossa altura, o que diminui a força de sua presença, que lhe conferia uma distância aurática. Ainda não conseguimos determinar seu tamanho real, mas por parecer menos afastada e com sua base cortada, estando no nosso nível e não acima de nós, a obra parece mais curta, menor. A experiência de vê-la daqui é muito diferente da que temos ao olhá-la de baixo. Existe ainda uma terceira visada, a partir da Rua Bela Cintra, por entre prédios vizinhos, mas acredito que ela é menos relevante, quase acidental, uma curiosidade, pois parte de  uma distância que me parece não acrescentar muito à obra.

Outro aspecto de Eco é revelado pelo seu nome. Em um vídeo, disponível no Youtube e em televisores colocados junto aos acessos à obra, o artista aponta o fato de que uma placa é a repetição da outra, mas levemente alterada, uma reverberação – “não exatamente a mesma coisa” – como um eco. Mas, ao pensarmos sobre este nome, também somos levados a refletir sobre os sons à nossa volta e os notamos com clareza. Eles são amplificados pela obra – seria ela um enorme diapasão? – ou simplesmente escutamos o que normalmente teríamos ignorado por focarmos neles, como proposto no início deste texto?  A começar, o cascalho que cobre o chão não deixa nossos passos passarem despercebidos, anunciando toda vez que pisamos e, como o eco na caverna, nos impõe grande consciência de nossa presença ali. Os barulhos externos também ficam evidentes, e notamos um zumbido persistente. É diferente da variedade de ruídos da Avenida Paulista, permeada pelos carros, ônibus, pessoas e performances que costumam ocupar esta via. Talvez o zumbido seja estes mesmos barulhos, reduzidos e homogeneizados pelo eco dos edifícios em volta, que os transportam até nós, destilados até se tornarem constantes. Mas é mais provável que venha das máquinas de ar-condicionado e de outras instalações dos prédios do entorno. Não estamos habituados a ouvir – ou notar – este som, e ao pensar na sua origem parece que nos descobrimos em um local diferente, como se estivéssemos nos bastidores da Avenida Paulista. Vemos os fundos, necessários para que a frente funcione, mas que não era para ninguém ver. Parecemos estar nas entranhas, no avesso desta via que é um marco de São Paulo e, portanto, no avesso da própria cidade. Quase como em Matrix, descobrimos as máquinas que sustentam a simulação da vida comum. Extrapolando, estamos nos fundos do mundo contemporâneo, e podemos refletir sobre diversas infraestruturas normalmente invisíveis mas necessárias para que nossa sociedade funcione, cujo ruído costumamos ignorar. Por exemplo, os data centers, edifícios que consomem quantidades abissais de energia e são um resquício físico das nuvens digitais, ativados por nós toda vez que usamos a internet, mas quase nunca lembrados.

Está claro que Eco não seria a mesma se estivesse em um local diferente. Mais do que um site-specific, o espaço é tão importante para esta obra que nos perguntamos se ela não vai além das duas placas de ferro e inclui também os muros, edifícios e todo o ambiente no qual está inserida. Mas, também, sua relação com nosso corpo é de extrema relevância e, ao caminhar por ela, nos tornamos agentes ativos da obra mais do que meros espectadores. Por isso, a experiência física é tão importante, e ela não pode ser vivenciada apenas através de imagens. Em um mundo onde o real e o virtual se embaralham cada vez mais, obras como essa, que requerem nossa presença, são muito relevantes. Além de ativar nossa consciência, ela ativa também nossos sentidos.

Térreo do IMS. Fotografia do autor.

Susan Sonntag, no ensaio “Sobre o estilo”, descreve o efeito que a arte provoca em nós: “O envolvimento com uma obra de arte acarreta, sem dúvida, a experiência de um afastamento do mundo. Mas a obra de arte em si é também um objeto vibrante, mágico e exemplar que nos devolve ao mundo mais abertos e enriquecidos.” Eco faz justamente isso. Ela nos tira da inércia do nosso cotidiano e somos levados a refletir sobre fatos que muitas vezes tomamos como dados – o tamanho dos edifícios – ou que poderiam passar despercebidos – os sons ao nosso redor. Nossos sentidos saem desta experiência mais aguçados e sensíveis, e nos vemos extrapolando as questões levantadas para outros aspectos da nossa vida, nem que seja só escutando com mais atenção. As perguntas que esta obra provoca são levadas para além do contato com ela, e continuam ressoando quando voltamos para nosso cotidiano, como um eco.

 

 

Fontes:

Eco, depoimentos de Richard Serra. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=QzcdwfsrbaE, acesso em 19/04/2025

Inauguração de “Eco”, de Richard Serra | Conversa no IMS Paulista. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=XQCEG6FabqU&t=1962s , acesoe em 19/04/2025

SONTAG, Susan. Sobre o estilo. In: SONTAG, Susan. Contra a interpretação: e outros ensaios. Tradução: Denise Bottmann. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. p. 30-60.

Foto de tilted arc retirada de https://www.kunsteder.dk/en/cases/when-art-gets-in-the-way

 

Picture of Pedro Rangel

Pedro Rangel

Pedro Rangel Bomeisel (São Paulo, 2000) é arquiteto, formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Trabalhou no Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia (MuBE) em 2023 e 2024. Fez uma pesquisa sobre este museu e suas expografias mais recentes, que resultou no texto “A arquitetura do MuBE através de suas exposições”, seu trabalho final da graduação.

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